BARATO


− Você fuma um?
Ai, do que ele tá falando? Escolhi perder coordenadas nessa noite, eu sei. Talvez tenha ido
longe demais.
− Hum − Espera, respira, faz uma cara boa, opa, certo, vai. − Um o que?
Ridícula.
− Um beck.
Ai, é claro. Droga, pareço uma estúpida.
− Ah, sim, sim, fumo, não sempre, se tem alguém fumando e me oferece eu pego, sem
problemas, pego, curto, não é sempre, mas fumo já fumei fumo fumo sim, claro.
Que nervosismo é esse, garota?
O cara é legal, vai, relaxa aí, que inferno. Na pior das hipóteses, você inventa que seu último ônibus vai sair já já e que precisa se mandar.
− Quer um agora?
− Pode ser.

Tinha “fumado um” algumas vezes antes, umas cinco, seis, talvez sete, por aí.
Achava que era meio imune, porque nunca bateu.
Foram aulas e aulas.
“Tem que sentir na garganta, você sente?”.
“Sinto, porra”. COF COF.
Barato.
Era difícil separar o barato do beck do barato que já rolava.
Vivia de baratos.
Um barato em cima do outro, quase sempre naturais.
O maior de todos: ele, sempre ele.

COF COF COF COF COF COF COF COF COF COF COF COF.
Lágrimas. LÁ-GRI-MAS.
− Pôxa, você quer uma água?
Vergonha. Derrota. Lama. Um buraco, por favor.
− Não, cof, não precisa, obrigada, COF.
Tudo indica que ainda não pareci tonta o suficiente por uma noite.
Obrigada, universo.
− Me fala, você já fez peruana?
− Hum, acho que não. − Preciso ficar com medo? Ai, não, não, não. − O que é?
COF COF COF.
Espero que seja uma técnica para desaparecer num piscar de olhos.
− É quando um segura a fumaça do beck e solta na boca do outro. Quer tentar? Vem cá,
vou te mostrar.
Uau, ele é bom nisso.


Desses cinco, seis, talvez sete, por aí, tinha fumado metade com ele.
O último tinha sido com ele.
O penúltimo também, na cama dele, em uma noite fria de sábado.
Vinho, tinham bebido um monte de vinho.
Voltavam de uma festa.
Juntos, estavam tão juntos.
Era o ápice dos dois, só percebeu muito tempo depois.
Ria como nunca, mas sequer cogitou que pudesse ser por causa do beck.
Era por causa dele e de tudo o que faltava nele.
De tudo o que faltava nela.
Voltavam de uma festa.
Era o ápice dos dois.
Passou.

− Você é muito linda...
Não bateu. Não bateu. Não bateu.
− ...Fiquei feliz que você veio...
NÃO BATEU. Não bateu.
− ...Ei, tá tudo bem com você?
Bateu?
− Oi. − Isso, nem disfarça que não tava prestando atenção. − Desculpa, tô bem sim.
− Ouviu quando eu disse que você é linda?
− Que fofo você.
− Mas é verdade.
E você é fofo de verdade.
Bonito. Engraçado. Interessante. Espontâneo, do jeito que eu gosto.
Você não é ele.
− Hehe.
− Curtiu a peruana? Vem cá, faz você comigo agora.
Por hoje, com sorte.


Errado. Foi como tudo começou.
Foram ágeis na hora de fingir uma fundação, trêmula.
Não foram na hora de assumir o fracasso.
Não dá, não dá, não dá, não dá, não dá, não dá. Não dá para se equilibrar sobre algo que, não tendo sido planejado, nem espontâneo foi.
Ninguém teve coragem de dizer.
Gostavam de músicas das quais ninguém mais gostava, e as ouviam juntos, divertindo-se com o isolamento quase cruel do amor.
Se amavam.
Errado.

Ele vai me chamar para ir pro quarto.
− Quer ir lá pro quarto?
Gosto que ele seja tão direto.
Gentilmente direto. Diretamente gentil.
− Vamos.
Dane-se.
− Vou pegar mais umas cervejas pra gente.
− Tá bom. − Mais cervejas. Não preciso de mais cervejas. − Vou ao banheiro enquanto isso.
COF.
Espelho. Eu.
Olhos vermelhos e cabelos bagunçados.
Pele péssima.
Sentia falta.
Tentei tanto me encontrar em outros braços.
Me perdi.
Mas que bem faz pensar nisso tudo agora?
Há tempos que não estou preocupada em tratar a mim mesma com qualquer carinho.
Tô horrível.
Com olhos vermelhos, cabelos bagunçados, pele oleosa.
O resto, em pedaços.


Ele não te quer mais.
Você sabe disso, se acostuma, vai viver, conhecer gente nova, descobrir a beleza de gente nova, vai, esquece dele, ele não te quer mais.
Ele não te quer mais.
Ele não te quer mais, e agora fuma os becks dele sozinho, deitado na cama, com a janela do quarto aberta, vendo poesia na fumaça e ouvindo o ruído do mundo lá do oitavo andar.
Ou fuma com outra menina, uma que aceite o barato, que se entregue ao barato.
Que se entregue para ele.
Do sétimo, do outro lado da cidade, ouço apenas o seu rosto.

− Preciso ir, meu último ônibus sai já já.
Não discute, não vira um chato, não inventa de cuidar de mim, continue perfeito.
− Tá bom.
− A gente pode se ver de novo na semana que vem.
− Legal, eu gostaria...
Eu gostaria também.
− ...Foi ótimo.
Eu também achei ótimo.
Achei.
Achei mesmo.
Acho.
De verdade.
Ah, você não entenderia.
− Tchau.
− Se cuida por aí, tá tarde.
Quase.
− Relaxa, eu sei me cuidar.

Traíra, mais uma vez. Ainda parecia tão errado.