ACIDENTE


Ela disse: "você é o amor da minha vida". Disse isso mais de uma vez e em momentos calculadamente variados, como se quisesse ter a certeza de que eu me lembraria. Disse de manhã, disse com o céu ainda escuro, disse no fim de tarde (que deixei escapar ser o meu horário preferido), disse durante o calor de nós dois suados e grudando como se fôssemos um só ser grotesco com quatro braços e pernas e bocas sedentas de beijos e validações, disse embaixo de chuva, disse antes e depois das lágrimas, disse embaixo daquele edredon vermelho.
E "você é o amor da minha vida" não é algo fácil de se ouvir.
Dane-se se é difícil de dizer. É difícil de ouvir. Te atropela a toda velocidade e você voa por cima dos fios telefônicos e cai com estrondo e bate a cabeça na guia da calçada cheia de poças de água suja e restos da vida alheia. E como se sentir os ossos esfarelando já não fosse duro o bastante, você ainda precisa reagir ao amor falado, ao imenso amor falado que ninguém sabe exatamente o que significa, mas que ataca e que, sabe?, no fim é só uma expressão da dor mais forte que o outro já sentiu no vazio do peito, a dor que é tão humana que se confunde com êxtase e conforto e esperança, a dor que alguém se tornou capaz de causar em você e que você aceita como um presente, um bolo de sete andares confeitado de vida e chamado de "amor".
É preciso reagir, e o problema, veja bem, o problema que me leva a expôr estas convicções trágicas e os pulsos marcados a quem mal conheço em linhas perversas e nuas, NUAS -- o problema é que penso hoje e sequer me lembro de qual foi minha resposta.
Por mais que eu tente e grite com o reflexo no espelho e bata a cabeça nas paredes brancas desse quarto abafado, não me lembro do que respondi quando a ouvi entregar o título de amor maior a alguém que do amor esperava apenas sangue e ossos transformados em pó. Não me lembro e me apavoro, pois se não sei muito da vida, sei que a amei amei amei amei amei, e se não tive coragem de dizê-lo, foi esse o acidente.
Continuo forçando a memória.
Mas já se passaram onze anos, e assim como me esqueci do que respondi naqueles dias e noites de frio e calor e perigo e corpos mutantes e aterrorizados, tremo ao imaginar que ela tenha se esquecido de que um dia sentiu por mim algo tão forte, de que um dia me chamou de
o
amor
da
sua
vida.