ESCALA
Quando a saudade cresce, tomo longos banhos, escrevo longas cartas, faço muito de tudo, ganho metros na imaginação. Aumento o mundo para que ele fique do tamanho da sua falta e ela não me esmague mais.
SOBRAS
Do primeiro, levei o gosto por bandas obscuras (que só comecei a ouvir depois que terminamos), meus primeiros passeios pelo Rio, algumas camisetas coloridas. Levei seus amigos e até alguns Rs mais puxados, que já perdi. O segundo deixou tanto. Centenas de e-mails na minha caixa de entrada, a bossa nova, sua forma de ver a vida. Foi o terceiro quem me deu incentivo: nunca escrevi tanto. Por causa do quarto, comecei a ver filmes antigos. Baixei tantos que não consegui ver tudo até hoje (como me esforcei para que desse certo). Do quinto, estou levando pouco mais do que algumas canções do Chico. Não tivemos tempo.
OLHAR
e num segundo, entre tantos segundos envergonhados e desconfortáveis e semsaberoquefazercomasmãos e deliciosos, viram algo nos olhos um do outro, pela primeira vez. num segundo, deixaram de ser quem eram e se tornaram algo que ainda estava por ser. seriam. haveriam de ser. QUERIAM SER, e disso lhes dependia a vida.
uma palavra, duas, poucas sílabas.
"ei, você".
cinco horas, vinte e um dias, dois meses.
BOOM.
o beijo que se atrasou.
tudo ainda estava por vir.
uma palavra, duas, poucas sílabas.
"ei, você".
cinco horas, vinte e um dias, dois meses.
BOOM.
o beijo que se atrasou.
tudo ainda estava por vir.
PERFUME
Busquei formas de pasteurizar o meu amor.
É evidente que não as encontrei.
Mas esse é apenas mais um fracasso. Há muito que surpreendo-me pouco com as minhas próprias limitações, e há muito que não há nada de novo em sentir saudade.
Evito a repetição contando algo que penso ser inédito: evito-a contando da manhã em que andava apressado pela rua e pensava em absolutamente todas as coisas do mundo e um estranho que passou por mim – imerso em qualquer coisa que não fosse eu – tornou o ato involuntário de existir irremediavelmente triste, sem me notar, triste, triste.
Ele usava o seu perfume, e isso bastou para que eu o seguisse, sem pensar, por sete quarteirões.
Por sete quarteirões, segui um desconhecido, aproximando-me aos poucos e cada vez mais, alheio ao desvio, às horas, aos carros e ônibus e pedestres, à vida que não espera, aos amores que se despedem, às horas.
Segui um desconhecido porque reconheci nele o seu perfume, do qual nem o nome sei, e a bêbada lembrança do cheiro adocicado pareceu, naquele momento, ser tudo o que me restava de você.
Quis gritar o seu nome.
Mas foi em silêncio que dei fim à perseguição observando o estranho encontrar quem esperava por ele em uma esquina calma daquelas ruas tão movimentadas nas primeiras horas da manhã, e os dois se abraçaram ao lado de um canteiro ofensivo de flores quase roxas e seguiram o percurso juntos e vestidos de alegria.
Não lembro de quanto tempo demorei para fazer o caminho de volta.
Da mesma forma, não me lembro qual o nome daquele perfume, daquele delicioso e traiçoeiro perfume, e seria hoje incapaz de descrevê-lo ainda que disso me dependesse a vida. Mas basta uma inspiração para que meus pulmões, tão cruéis em sua inocência, comuniquem cada parte esquecida do meu corpo cheio de defeitos de que nosso amor deixou de ser um passado distante e voltou a perfumar os dias.
Mas já me cansei de falar em saudade.
ACIDENTE
Ela disse: "você é o amor da minha vida". Disse isso mais de uma vez e em momentos calculadamente variados, como se quisesse ter a certeza de que eu me lembraria. Disse de manhã, disse com o céu ainda escuro, disse no fim de tarde (que deixei escapar ser o meu horário preferido), disse durante o calor de nós dois suados e grudando como se fôssemos um só ser grotesco com quatro braços e pernas e bocas sedentas de beijos e validações, disse embaixo de chuva, disse antes e depois das lágrimas, disse embaixo daquele edredon vermelho.
E "você é o amor da minha vida" não é algo fácil de se ouvir.
Dane-se se é difícil de dizer. É difícil de ouvir. Te atropela a toda velocidade e você voa por cima dos fios telefônicos e cai com estrondo e bate a cabeça na guia da calçada cheia de poças de água suja e restos da vida alheia. E como se sentir os ossos esfarelando já não fosse duro o bastante, você ainda precisa reagir ao amor falado, ao imenso amor falado que ninguém sabe exatamente o que significa, mas que ataca e que, sabe?, no fim é só uma expressão da dor mais forte que o outro já sentiu no vazio do peito, a dor que é tão humana que se confunde com êxtase e conforto e esperança, a dor que alguém se tornou capaz de causar em você e que você aceita como um presente, um bolo de sete andares confeitado de vida e chamado de "amor".
É preciso reagir, e o problema, veja bem, o problema que me leva a expôr estas convicções trágicas e os pulsos marcados a quem mal conheço em linhas perversas e nuas, NUAS -- o problema é que penso hoje e sequer me lembro de qual foi minha resposta.
Por mais que eu tente e grite com o reflexo no espelho e bata a cabeça nas paredes brancas desse quarto abafado, não me lembro do que respondi quando a ouvi entregar o título de amor maior a alguém que do amor esperava apenas sangue e ossos transformados em pó. Não me lembro e me apavoro, pois se não sei muito da vida, sei que a amei amei amei amei amei, e se não tive coragem de dizê-lo, foi esse o acidente.
Continuo forçando a memória.
Mas já se passaram onze anos, e assim como me esqueci do que respondi naqueles dias e noites de frio e calor e perigo e corpos mutantes e aterrorizados, tremo ao imaginar que ela tenha se esquecido de que um dia sentiu por mim algo tão forte, de que um dia me chamou de
o
amor
da
sua
vida.
ALARME
Acordei bêbado pela maciez dos lençóis e pelo frio agradável da manhã no meio desse verão enlouquecedor e pelo seu abraço, como se o mundo já tivesse desmoronado e você e eu sobrevivido ao fim dessa humanidade ausente de sentido se não estamos juntos -- e então acordei de novo.
Sonhos podem ser cruéis.
Sonhos podem ser cruéis.
MORTE
Há muito que a cada vez que ouvia o nome dele chorava como se estivesse sendo abraçada pela morte e ela lhe sussurrasse uma canção de ninar.
VAZIO
Esta noite tive um sonho ruim e acordei chorando, trêmulo, o corpo frágil disforme na cama, a manhã rasgando o tecido das cortinas. Me acostumei a te imaginar aqui, de modo que o fracasso ainda me surpreenda, e não me permita o contentamento com a felicidade menor que há na solidão. De coração em chamas e lágrimas libertas, escondi o rosto e abracei o nada. Abracei você.
SITUAÇÃO
Oh, desculpe, não vi você aí, ela disse com graça e um sorriso fácil nos lábios enquanto tropeçava nele, que estava jogado no chão da sala, sem camisa, de barba crescida, com o olhar fixo em algum nada. Fazia pouco da tragédia, a que se anunciava em tanto silêncio. Ele não respondeu. Assistindo à cena, ninguém diria que se amavam e que faltariam dedos para contar há quantos anos, e se amavam, se amavam como os vizinhos, os amigos, os colegas de trabalho, os parentes e os ex-namorados nunca julgariam possível, como se não houvesse mais nada a fazer com o tempo que lhes restava de vida. Se amavam, se amavam por não saberem mais como não se amarem, como se o amor rendasse o olhar e, inescapável, viciasse como pó, se amavam como se o fim não fosse chegar, ou como se por tanto se amarem não tivessem medo do fim. Se amavam, e seria de mãos dadas que se assistiriam morrer. E morriam, morriam mais rápido do que era capaz o amor, com a dureza do cansaço e do suor e das lágrimas, morriam juntos, a cada instante mais calados e mais separados e mais e sempre imersos em seus próprios amores. De mãos dadas, imaginando um outro jeito, um dia mais leve, uma vida com outras escolhas e menos amor.
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